Questão 1 (valor: 6,5 pontos)
O
autor do conto O cachorro canibal[1]
(veja o endereço do texto na nota abaixo e consulte-o) o ficcionista goiano
José J. Veiga (1915-1999), é considerado um dos responsáveis pela introdução no
Brasil do chamado conto fantástico ou realismo mágico, de
inspiração kafkiana, como diz Sergio
Amaral Silva no sítio da Editora Escala, na seção Revista Literatura[2].
Essa literatura teve seu auge entre nós na década de 1970 por influência de
toda uma geração de escritores latino-americanos, dentre os quais se pode
citar, apenas a título de ilustração, o colombiano Gabriel Garcia Márquez
(1928) e o argentino (nascido
acidentalmente na Bélgica) Julio Cortázar (1914-1984). Na
verdade, nessa modalidade literária, espécie de subgênero, há indícios do
estranho, isso é, encontram-se elementos que reduzem o principal acontecimento
da narrativa a um modo estranho de ser das coisas familiares.
1.1. (1,5 ponto) Explique, com suas palavras, o que haveria de diferente nessa narrativa,
de modo a poder ser considerada próxima do conto fantástico. Comente essas
características buscando exemplos no texto.
1.2.
(1,5 ponto) Registre o esforço das personagens ou do narrador em buscar explicações racionais
para o acontecimento e mostre como esses procedimentos podem afetar a leitura e
influenciar o leitor.
Logo
no início da narrativa do conto há um desejo de fazer o cão parecer comum: “quem o viu deitado numa nesga de grama
debaixo do jasmineiro pensou em um cão errante, igual a tantos que cruzam o
mundo em todas as direções,”[...]; depois
vai introduzindo um ou outro elemento que possa se transformar, como a fome do
cachorro, a irritação com as moscas (Via-se que estava faminto, mas o
cansaço impressionava mais, talvez devido a seu litígio incessante contra as
moscas). Há também uma tendência da
narrativa de tratar o animal como se fosse humano, tivesse sentimentos de
gente, e assim passaram a trata-lo: “E gostaram tanto dele na casa que
estragaram tudo com a solicitude de amaciar-lhe a vida. Vendo-o brincar sozinho
no jardim alguém lembrou-se de arranjar-lhe um companheiro menor.” E aí começa a virada do texto no sentido de
tornar as coisas estranhas,
motivadas pela disputa entre os cães. O narrado confidencia ao leitor:
“Aquele estado de coisas não podia acabar bem. Mais dia menos dia...” Até que a coisa se evidencia: “Quando
esse, que estava deitado de costas dando coices para o ar, sentiu aquela pata
pesada no peito, julgou tratar-se de alguma brincadeira e ainda rosnou de
brinquedo. A primeira dentadas feriu-o na carne mole do ventre.” Não muda o tratamento dos humanos, há um
desencontro de intenções entre os humanos e esse cachorro que se livrara do
companheiro, devorando-o: “Se ele pensava que ia ser feliz dai por diante,
deve ter omitido em seus cáculos algum elemento mito importante; porque desde
esse dia ele mudou completamente, a ponto de parecer outro cachorro. É claro
que as pessoas da casa interpretavam a mudança como consequência da perda do
companheiro (O que não deixava de ser) e combinaram ter paciência com ele.Isso também dá um tom estranho. Que pessoas
são essas?Pessoas que passaram a rejeitá-lo pela indiferença. Novamente o cão é
visto pelos olhar que lhe atribui traços humanos: “mas o que se via era as
pessoas tomarem trabalho para não incomodá-lo, se afastarem para lhe dar
passagem. Não sabendo chorar ele procurava gastar a angústia caminhado sem
parar, talvez na esperança de se cansar e cair de vez.” Não chega a ser exatamente fantástico, mas leva os personagens ao
limite da incredulidade pelo excesso de humanização e pela reação alterada do
cachorro em relação ao amigo concorrente.
1.3.
(1,5 ponto) Tendo em mente a ideia de que a literatura fantástica
apresenta uma lógica diversa daquela que ordinariamente percebemos no mundo que
nos cerca, lembre-se de que em cada texto esse estranhamento pode se apresentar
de modo diferente, numa gradação que pode chegar ao
extraordinário, ao maravilhoso, onde haja intervenção de mundos até então
inadmissíveis, regidos por leis próprias, como se leu no material didático
(Aula 12). Assim sendo, faça você esse exercício de escrita: releia o conto de José J. Veiga e reescreva
apenas o último parágrafo incluindo elementos que o caracterizem como
maravilhoso.
Exemplo
possível de releitura:
Diz o conto original: “Por uma misteriosa repulsão as pessoas
passaram evitá-lo, não lhe afagavam mais a cabeça, não lhe alisavam o pêlo, ninguém
lhe amarrotavam as orelhas para ouvi-lo ganir, o que é também uma forma de
mostrar a um cão que se gosta dele. Agora era só respeito, um respeito
apreensivo. Às vezes ele se instalava numa passagem, parece que desejando que o
maltratassem, que o enxotassem, que o humilhassem; mas o que se via era as
pessoas tomarem trabalho para não incomodá-lo, se afastarem para lhe dar
passagem. Não sabendo chorar ele [alteração
do final] começou a procurar um modo de manigestar a angústia: aprendeu
a entoar cantos tristes. No início eram
só gemidos esparsos, que as pessoas mal percebiam. Os gemidos viraram sons
agudos e se transformaram em palavras. Em torno dele uns olhavam para os
outros, sem acreditar. Mas ele passava as tardes a emitir sons cada vez mais
inteligívies, como a confessar uma culpa, caminhado sem parar, talvez na
esperança de se cansar e cair de vez. E quanto mais se movimentava, mais dava a
impressão de estar se apresentando numa
cena, num palco onde deveria expor sua alma despedaçada.
____________________
1.4.
(2 pontos) Observe a forma de narrar usada por José J. Veiga neste
conto. Comente então o modo como
apresenta os elementos singularizantes listados abaixo, exemplificando cada uma
delas com passagens do texto.
a)
como se dá apresentação do tempo?
Otempo não é
delimitado de forma específica, clara. Apensa os verbos no passado, desde o
início: “Percebia-se...” e traça um tempo sem início nem fim muito claros,
b)
como se manifesta o narrador?
O narrador está
bem próximo dos fatos, uma testemunha invisível que observa e interpreta, lê os
sentimentos e as intenções. Um narrador que sabe tudo, onisciente.
c)
como é apresentado o espaço?
O espaço de uma
casa de cidade de interior, com varanda e gramado.
d)
como se expressa a ação?
A ação é lenta,
acompanha os movimentos do cachorro desde seu aparecimento, ao ápice de sua
atitude, até o final melancólico.
Questão 2
(valor 3,5 pontos)
Leia
esse episódio de REINAÇÕES DE NARIZINHO (A operação cirúrgica), de Monteiro
Lobato.
Rabicó
fora chamar o médico. Meia hora depois chegava o célebre Doutor Caramujo,
afobadíssimo, de malinha debaixo do braço.
-
Quem é o doente? – foi logo indagando.
O
médico dirigiu-se para a lata do Visconde, examinou-o e franziu a testa.
-
Hum! O caso é dos mais graves. Tenho de operá-lo imediatamente. Sua Excelência
está empanturrado de álgebra e outras ciências empanturrantes. Tragam-me uma
bacia d’água, toalha e também uma pedra de amolar.
Pedrinho
trouxe as coisas pedidas; o médico amolou na pedra a sua faquinha e abriu de
alto a baixo a barriga do Visconde.
-
Chi! – exclamou fazendo uma careta – Vejam como está esse pobre ventre.
Completamente entupido de corpos estranhos.
Pedrinho
e Narizinho espiaram aquela barriga aberta e viram que, em vez de tripas, o
Visconde só tinha uma maçaroca de letras e sinais algébricos, misturados com
“senos”, “cossenos” e “logaritmos” - ou “mangaritmos” – como dizia tia
Nastácia.
-
Coitado! – exclamaram ambos compungidos. – Está mesmo muito mal.
O
Doutor Caramujo tomou uma colherzinha e começou a tirar para fora toda aquela
tranqueira científica, depositando-a num pequeno balde que Pedrinho segurava.
-
Não tire todas as letras – advertiu o menino. – Se não ele fica bobo demais.
Deixe algumas para semente.
-
É o que estou fazendo. Estou tirando só o que é álgebra. Álgebra é pior que
jabuticaba com caroço para entupir o freguês.[3]
2.1.
(1 ponto) A partir da leitura comente a relação entre verossimilhança e os acontecimentos do
texto de Monteiro Lobato. Procure explicar a importância da verossimilhança
para o engajamento do leitor infantil na leitura.
Lobato aproxima o mundo adulto do
universo infantil, critica os excessos com os olhos mágicos da criança, para
quem algumas ciências parecem oferecer termos engraçados, ou comportamentos de
adultos muito obsecados, que se empaturram de conhecimento. A crítica de Lobato
é simpática, bem humorada, a criança percebe que ele não é contra o estudo, à
álgebra, mas contra o abuso, o excesso.
2.2. (1,5 ponto) A literatura infantil de Lobato já é
um clássico, e o que na época do modernismo parecia grande novidade, hoje
parece mais corriqueiro. Tomando esse trecho como exemplo e considerando as
funções que a literatura infantil precisava cumprir, para as gerações
anteriores a Lobato, justifique e explique a contribuição que este autor trouxe
para a Literatura infantil no Brasil.
A
literatura infantil deveria cumprir o papel de mestra de ensinamentos, mas em
geral de modo punitivo, negativo. A novidade que o modernismo trouxe foi a
introdução do humor. Os temas poderiam se repetir, mas a maneira de apresentar
perdeu o traço pesado e amedrontador da literatura herdada dos contos infantis
alemães, como em Grimm. Lobato trouxe a realidade brasileira, rural, com as
figuras simpáticas de Dona Benta e Tia Anastácia (a cozinheira negra e a patroa
branca idosa), além da fantasia e mágica dos animais falantes, o milho falante
inteligente e culto.
2.3. (1 ponto) Por outro lado, o que há nessa
narrativa que está em sintonia com a tradição literária para crianças?
Ela
guarda a vocação para o ensinamento, para a reflexão sobre atitudes,
comportamentos que precisam ser modificados. O que mudou foi o modo de tratar
esses personagens, a linguagem que usam, o tom da linguagem.
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